ENVIADO ESPECIAL A TAIPÉ - “Se a China Atacar”. “Lidando com a China”. “Precisamos falar sobre Xi”. As capas em destaque na seção de atualidades e política da mais famosa rede de livrarias em Taipé não deixam dúvida sobre o assunto número um na ilha. Ou, como enfatiza Joseph Wu, o conselheiro nacional de Segurança de Taiwan, o “problema número um, número dois e também número três de Taiwan é a China”. “Tudo vira arma contra Taiwan”, queixa-se ele.
Enquanto se prepara para enfrentar uma ameaça existencial vinda de Pequim e encara toda sorte de obstáculos advindos - pressão militar, coerção econômico-comercial e supressão diplomática - a ilha também mira o ado. Afinal, a reivindicação de soberania do líder chinês, Xi Jinping, sobre o arquipélago vizinho tem raízes históricas: laços milenares com continente, elos culturais e étnicos, e remonta à Revolução Comunista.

Uma das expressões desse fenômeno em curso no território insular é o debate sobre um legado sombrio de seu mais longevo governante, o ex-presidente e ex-líder militar nacionalista chinês Chiang Kai-shek - ele próprio um símbolo do vínculo histórico entre a China continental e Taipé.
O regime dele perseguiu, torturou e matou milhares de opositores. Sua imagem oscila entre a de um defensor da independência ante a ameaça comunista e a de um opressor de divergentes que ordenou pessoalmente execuções.

Após perder a guera civil, em 1949, Chiang Kai-shek refugiou-se com a estrutura de poder do Kuomintang (KMT), o Partido Nacionalista Chinês, na ilha Formosa. Estabeleceu a República da China em Taipé. Levou consigo 1,2 milhão de pessoas, entre apoiadores, famílias ricas e a burocracia, inclusive o aparato militar e de repressão.
De lá, reclamou comandar a verdadeira China, inclusive o continente, e governou como um ditador até sua morte, em 1975. Quatro anos antes, a comunidade internacional iniciava, nas Nações Unidas, o reconhecimento majoritário da República Popular da China, governada pelo Partido Comunista Chinês, de Pequim, que dura até hoje - Taipé mantém laços diplomáticos formais com apenas 12 aliados.

O atual governo do Partido Democrático Progressista (DPP) fomenta o resgate e a discussão sobre o período de opressão chefiado pelo ditador na ilha, conhecido como “Terror Branco” - de 1945 a 1992. Inclui também o governo de Chiang Ching-Kuo. Filho de Chiang Kai-shek, ele foi ministro da Defesa e sucedeu o pai num governo de dez anos (1978-1988) que encerrou a lei marcial, em 1987, um o para a abertura do regime.
Antes, foram mais de quatro décadas de repressão estatal, militar e partidária contra pessoas consideradas subversivas ou comunistas. A lei marcial foi declarada dois anos após o massacre 228, ocorrido em 1947, quando o aparato do KMT deteve e matou um número até hoje incerto (entre centenas e milhares) de manifestantes rebelados contra ao governo, por causa de um episódio de violência ligado ao contrabando de cigarros.
Principalmente nos cinco mandatos de Chiang Kai-shek, o Estado prendeu, julgou, condenou e assassinou milhares de opositores sob suspeita de traição, conspiração e colaboração com comunistas - inclusive inocentes. Houve milhares de casos de desaparecimentos e torturas por parte da polícia secreta em Taiwan. Nos últimos 20 anos, comitês governamentais chegaram a estimar 140 mil vítimas - entre 3 e 4 mil delas executadas.
Arquivos do governo revelam que 1.153 pessoas foram condenadas à morte durante o Terror Branco. Chiang Kai-shek interveio pessoalmente na sentença de 970 pessoas para condenar 259 delas à pena capital. Com uma canetada, a lápis vermelho, ele determinou a execução de cinco indivíduos que não haviam sido julgados culpados e de 18 que originalmente haviam sido sentenciados à pena de reeducação. O enorme aparato e a concentração de poder levaram à prisão arbitrária de 21.257 indivíduos, por razões políticas.

A busca por esclarecer o ado continua. Um dos trabalhos em curso é justamente resgatar documentos e toda sorte de registros que se mostrem evidências mais próximas da realidade. O regime do KMT escreveu a história com controle sobre a imprensa, vigilância e medo. “Não havia liberdade de expressão e de imprensa. Havia um partido único governante, com restrições à pluralidade de meios”, lembra o vice-ministro das Relações Exteriores, Remus Li-Kuo Chen.
Transição
Hoje os papéis do ex-generalíssimo e de seu filho-sucessor na história vêm sendo revistos. Não sem objeção do KMT, até hoje um dos principais partidos da ilha, e de lideranças militares. Essa resistência encontra certo respaldo popular, apesar de ordens previstas na legislação. Já quem apoia a revisão critica a demora.
Em 2017, Chiang Kai-shek e Chiang Ching-Kuo foram enquadrados como “governantes autoritários”, no escopo de uma lei de Justiça de Transição aprovada pelo parlamento taiwanês. Por determinação desta lei, os símbolos de memória e reverência a esses dois governantes autoritários devem ser removidos, segundo o Ministério do Interior.
“O objetivo do governo é estabelecer uma ordem constitucional democrática e livre, negar a legitimidade do regime autoritário e lembrar as lições históricas dos eventos de violação dos direitos humanos, corrigir injustiças judiciais e istrativas, restaurar a verdade histórica, promover a reconciliação social, destacar a justiça judicial, corrigir o Estado de Direito e a educação em direitos humanos”, afirmou a pasta.
O ministério é responsável pela remoção desde 2022. Em dados inéditos enviados ao Estadão, o ministério contabilizou a existência de 937 símbolos autoritários em Taiwan - sendo estátuas, retratos e locais nomeados em homenagem a ambos. Eram 644 estátuas de Chiang Kai-shek. Dessas, 138 já haviam sido removidas e 506 estavam pendentes de retirada de espaços públicos, até junho ado.
O número já foi muito maior e vem diminuindo ano a ano. Na véspera da suspensão da lei marcial, ocorrida em 15 de julho de 1987, havia cerca de 4.500 estátuas de Chiang Kai-shek expostas ao público, conforme o Comitê de Promoção da Justiça de Transição do Poder Executivo. Em 2019, após uma investigação preliminar, foram encontradas 1.075 estátuas.

O governo central promove a remoção de estátuas de diferentes dimensões, algumas enormes ou menores, mas sempre expostas em espaços públicos ao redor de toda a ilha de Taiwan, principalmente em escolas, praças, parques e unidades militares. Também estimula a troca de nomes de equipamentos públicos e logradouros, a retirada de retratos e o apagamento de murais.
A maior parte das estátuas removidas vai para o Parque de Esculturas Memorial Cihu, em Taoyuan, situado ao sul de Taipé. Ele fica perto do mausoléu do ex-ditador. Há cerca de 200 estátuas dele, em distintos materiais, de pé, sentado ou cavalgando.
A remoção dos bustos, a troca de nomes e a mudança em cerimônias militares que reverenciam o “generalíssimo” é uma das frentes de continuidade aos trabalhos da Comissão de Justiça Transicional. O colegiado foi criado e funcionou entre 2018 e 2022, por determinação da ex-presidente Tsai Ing-wen. Depois foi criado o Departamento de Direitos Humanos e Justiça Transicional e os trabalhos aram a ser realizados por outros seis órgãos governamentais - cinco ministérios e o Conselho de Desenvolvimento Nacional.
Desde então, foram desclassificados arquivos políticos antes ocultos pelo sigilo oficial e revistas cerca de 6 mil condenações, de corte militar, como forma de reparação a vítimas e familiares, e removidos os símbolos do autoritarismo.
Há um ano no poder, o presidente Lai Ching-te, conhecido como William Lai, promete dar continuidade - embora os taiwaneses estejam descrentes sobre que ritmo o processo deve seguir. Em recente discurso de ano novo, o presidente Lai defendeu “consolidar a democracia com mais democracia”.
“Taiwan atravessou uma era sombria de autoritarismo e desde então se tornou um glorioso farol da democracia na Ásia. Isso foi alcançado por meio dos sacrifícios de nossos anteados democráticos e dos esforços conjuntos de todos os nossos cidadãos“, disse Lai, no Ano Novo. “Não importa a ameaça ou o desafio que Taiwan possa enfrentar, a democracia é o único caminho para Taiwan seguir em frente. Não voltaremos atrás.”

Resistência e incentivo
Tais espaços e monumentos são reconhecidos por parte da sociedade taiwanesa como formas de reverência a um ditador - algo que não deveria existir.
O avanço encontra resistências entre políticos do KMT e também nas fileiras da caserna, relatam políticos e autoridades do governo taiwanês à imprensa local. As Forças Armadas estariam retardando o processo que atinge seu antigo líder por causa de “tradições militares”. Mas não só. Até entre os civis a ofensiva ou desagrada, ou não encontra total respaldo.
O governo evita apontar o dedo aos militares, mas reconhece que nem todos os órgãos do Estado trabalham em sintonia, embora houvesse tal determinação na lei, independente da esfera de governo. “Algumas agências ainda não cooperaram com as políticas de tratamento dos símbolos autoritários. Considerando que o público tem diferentes percepções e posições sobre a remoção de estátuas e outros símbolos autoritários, o Ministério do Interior fortalecerá a comunicação para formar um consenso sobre o tratamento”, disse a pasta ao Estadão.
Além disso, o governo central oferece recursos para incentivar a adesão. Desde 2023, sedes de órgãos públicos, de todas as esferas de poder, e escolas públicas e privadas, de todos os níveis, podem receber um subsídio de até R$ 18 mil (100 mil dólares taiwaneses, a moeda local) para remover, renomear ou mudar o tratamento dos símbolos da tirania. No caso das estátuas, a decisão tem sido pela remoção, embora casos especiais possam ser objetivo de discussão pontual.
Preso político
Sobreviventes da repressão estatal integram o movimento de pressão sobre o governo para acelerar o processo de revisão e retirada. É o caso do ex-preso político Fred Him-San Chin, de 75 anos. Nascido na Malásia e hoje cidadão taiwanês, ele foi detido pelos agentes do regime em 1971, sob falso pretexto de envolvimento numa explosão a bomba um ano anos, na sede de um órgão norte-americano.
Então estudante de Engenharia Química da Universidade Cheng Kung, em Tainan, Fred Chin foi raptado, torturado e condenado a 12 anos de reclusão. Hoje Fred Chin conta sua história no Museu Nacional de Direitos Humanos, criado em 2018, também no contexto da revisão do Terror Branco.
Ao Estadão, ele afirma ser a favor da derrubada de qualquer símbolo do ex-ditador e pede ainda que sejam trocados nomes de ruas, escolas e universidades. Mas ressalta que essa revisão histórica não deve ser convertida em vingança, nem em ferramenta para dividir a população politicamente. Chin ite que a crença de que “Chiang Kai-shek representa a prosperidade e a felicidade do povo taiwanês” persiste entre pessoas de diferentes gerações, que defendem a manutenção das homenagens.
“Acho excelente remover todas as estátuas se possível. Mas não devemos usar isso como uma forma de vingança, especialmente a grande estátua no Memorial Chiang Kai-shek. Toda vez que eu entrava naquele grande salão, eu sentia um tipo de pressão na cabeça, vindo de cima”, relata Fred Chin. “Ele deveria ser responsabilizado por todo o período do terror. Era o líder do governo naquele momento. Como faleceu, não temos intenção de puni-lo ou de nos vingar contra ele. Esperamos que ele seja responsabilizado, para encerrar os conflitos entre os cidadãos locais. Espero que os partidos, os militantes ideológicos, não usem um incidente desses para criar conflito. Não estamos procurando por isso. Queremos a paz dentro desta ilha. Devemos resistir a quaisquer desafios vindos de fora, do outro lado do Estreito. Espero que todos os taiwaneses se unam com um só coração para lutar pela soberania de Taiwan.”
O ex-preso político afirma não ter esperanças de que o atual governo a remova a grande estátua. Ele considera complicado avançar no meio militar: “Não espero nada, mas continuaremos a pressionar o governo. O Exército quer manter as estátuas nos quartéis. Será muito difícil remover qualquer estátua no campo militar”.

Salão Memorial
O maior debate é sobre o que fazer com o Salão Memorial Nacional Chiang Kai-shek, gerido pelo Ministério da Cultura. É o principal monumento ao antigo ditador, localizado numa área nobre da capital. A direção do memorial que transformar o espaço em equipamento “neutro” que expresse “valores democráticos” em vez da “adoração autoritária”. Eventos culturais vêm sendo promovidos lá, bem como exposições permanentes que mostram detalhes do Terror Branco sob o jugo do ditador.
O memorial imponente de 70 metros de altura, de paredes brancas e telhado azul, desponta no horizonte de Taipé. A edificação com o busto gigante do ditador, de 6,5 metros, contrasta com a diminuta bandeira taiwanesa flamejante ao centro da Praça da Liberdade. O principal monumento erguido para lembrar Ching Kai-shek tem lugar de destaque na praça, em choque com a repressão comandada por ele na vigência da mais longa lei marcial de seu tempo, quando em Taiwan não se viveu sob um regime de liberdade.
O governo determinou a construção do salão memorial no ano de sua morte - e demorou cinco anos. Inaugurado, em 1980, o monumento ou a receber inúmeras celebrações nas datas de nascimento e morte de Chiang Kai-shek, em expressão de culto à personalidade do ex-ditador, chamado de “lorde Chiang” e “nosso líder eterno”.
O local virou ponto de manifestação popular. Reúne tanto pessoas que vão, literalmente, bater continência ao ex-generalíssimo quanto manifestantes com cartazes e faixas contrários à existência de um monumento ao ex-ditador.
Parte deles prega a demolição do salão. Não aceitam a enorme edificação, no coração de Taipé, para celebrar um ditador. A estátua de bronze de 6,3 metros de altura, dentro da câmara principal, já foi alvejada algumas vezes com tinta vermelha.
Ali, diariamente, a guarda de honra, trajada de farda totalmente branca e coturnos pretos, manobrava fuzis com baionetas em frente a centenas de pessoas, diante da imensa estátua ao fundo. Todos faziam silêncio, e o barulho da pisada dos seis sentinelas e da pancada dos fuzis contra o solo ecoava no salão.
Hoje é um dos principais pontos turísticos da ilha. A Praça da Liberdade recebe cerimônias oficiais e inclusive recepções a autoridades estrangeiras. A remoção completa do Memorial foi proposta há quatros anos, mas ele segue onde está há 45 anos.
O que mudou foram solenidades. Em julho, após a visita do Estadão, o Ministério da Cultura decidiu retirar a troca de guarda de dentro do salão - portanto diante da estátua de Chiang Kai-shek. A cerimônia militar ou para a área externa do memorial, como forma de reduzir a reverência ao antigo líder.
“Eliminar o culto à personalidade e a adoração do autoritarismo é o objetivo de promover a justiça transicional”, disse o Ministério da Cultura, na ocasião. O Ministério da Defesa manteve a troca de bandeira e as patrulhas ao redor do Salão Memorial.

O embate a respeito dos símbolos se insere na busca por distanciamento da China continental e no contexto da disputa político-partidária local, sobretudo entre KMT e DPP, os dois principais de Taiwan. O Kuomintang criou o salão, e o DDP o enquadrou como tributo à ditadura.
“Há uma tensão, uma batalha dentro dessa ilha. Somos uma sociedade polarizada. De um lado do espectro político pensam que somos independentes, de outro, que somos parte da China”, descreve Eve Chiu, diretora do Taiwan FactCheck Center, um centro jornalístico de verificação de informações online.

A ofensiva de revisão divide a sociedade. O Estadão conversou com taiwaneses a favor e contra, de diferentes gerações, durante visita a Taipé.
A vendedora de vinhos Hsinyu Chang, de 32 anos, afirmou ser contrária à retirada da grande estátua no Salão Memorial. “Espero que não removam, porque a estátua já faz parte das nossas vidas. Ela simplesmente existe.”
Embora nascida em Taiwan, ela se enxerga como de identidade chinesa e afirma estar apreensiva com as notícias sobre uma possível invasão. “Há muito sensacionalismo no noticiário, mas foco no meu presente”, queixa-se Chang, parte de uma geração que cresceu junto à restauração da democracia. “Tawian tem a cultura chinesa, não vejo distinções, não há uma diferença específica”, disse ao Estadão enquanto frequentava o templo histórico de Lungshan, que reúne budistas, taoístas e confucionistas em Taipé.

“Custou muito dinheiro construir o monumento e o salão memorial. Eu acho que devemos manter, porque é um monumento histórico. As pessoas precisam entender a história. Simplesmente removê-los, você na verdade remove a história, correto?”, argumenta o aposentado Jonathan Lin Wen Long, de 65 anos.
Há 15 anos, Jonathan Lin atua como guia bilíngue voluntário no Museu do Palácio Nacional e conta a estrangeiros, chineses e taiwaneses a história imperial da China. O museu abriga a maior parte da vasta coleção de peças artísticas retiradas da Cidade Proibida, em Pequim, durante a guerra civil e no contexto da fuga dos nacionalistas partidários do KMT para Taipé. São 698.887 artefatos, como jóias, pedras preciosas, cerâmicas, pinturas, gravuras, moedas, tapeçarias, entre outros.
Lin credita o debate atual às divergências políticas e disputa de poder entre o KMT e o DPP, e se diz politicamente “neutro”. Lin afirma que Chiang Kai-shek, por um lado, suprimiu a oposição, mas por outro desenvolveu a economia na ilha e lutou contra o comunismo. Por isso, alguns desenvolveram sentimentos de ódio, e outros, de gratidão.
“Precisamos de harmonia. Não nascemos para lutar uns contra os outros. As pessoas querem ter uma vida pacífica, se desenvolver economicamente. Mas os políticos têm seus próprios interesses e podem não escolher o caminho certo. Eu acho que a geração mais jovem é mais amigável para com o povo chinês, para com o povo taiwanês. Talvez as coisas melhorem depois de uma, duas gerações. Eles podem encontrar a solução. Um dia entenderão que lutar uns contra os outros não é uma boa ideia. Talvez.”

Angela Ku-Yuan Tzeng, de 60 anos, professora associada do Departamento de Psicologia na Chung Yuan Christian University tem uma visão distinta. Ela conta a história da ilha às terças-feiras, como voluntária, no Palácio Presidencial, a crianças, jovens e visitantes estrangeiros. Angela diz “odiar” as estátuas e opina que deveriam ser removidas pois se parecem como “heróis” , embora diga respeitar o sentimento contrário de amigos da China, de militares e eleitores do KMT.
“Se as estátuas estão lá, significa que aceitamos isso. E se você conhece a história de Taiwan, então você sabe o que ele fez, e o que o filho dele fez. E não estou dizendo que temos que culpá-los e desenterrar todo mundo, arruinar tudo o que eles possam ter alcançado. Mas ter uma estátua lá significa que estamos bem com isso. Então, pessoalmente, acho que deveria ser removida”, afirma Angela.

“Acho que para respeitar o meu desejo e o desejo de todos a melhor maneira é ar pela transformação. Devemos ter uma regra para tentar obter a justiça o máximo possível”, defende a professora, que pondera não se enxergar como uma ativista. Para ela, o governo deveria abrir os segredos e difundir o máximo de informações sobre o período da lei marcial e promover a discussão. “Não significa que eu quero colocar alguém na prisão agora. Mas encobrir as coisas ruins que eles fizeram não está certo. Precisamos revelar o máximo possível.”
Para ela, a ilha tem que se manter pacífica internamente e se preparar para a própria defesa, ante a possibilidade de guerra com a China. “Não nos enganemos. Eles não nos atacarão. Ninguém quer guerra. Mas sim, desde que eu era pequena, a guerra é sempre uma possibilidade. Então a única coisa que podemos fazer é ser fortes economicamente, politicamente, democraticamente, da maneira que pudermos. Vamos impedir que eles nos ataquem. As pessoas aqui brincam sobre quem ama mais Taiwan mais. Claro, é Xi Jinping. Entre todas as pessoas na terra, ele ama mais Taiwan, porque deseja nos ter.”

Precedentes
A revisão histórica teve impulso duas décadas atrás, quando o ex-presidente Chen Shui-bian, o primeiro do DPP, governou a ilha entre 2000 e 2008. Para afastar Taiwan da China, ele promoveu trocas de nomes de empresas públicas e também mirou nas homenagens a Chiang Kai-shek.
O governo inseriu a inscrição “Taiwan” na capa do aporte junto do brasão da República da China; trocou o nome do serviço postal para Correios de Taiwan (antes Correios da República da China) e das estatais de petróleo Taiwan C (antes Chinese Petroleum Corp.) e do estaleiro CSBC - Taiwan Shipbuilding Co. (antes China Shipbuilding Co.).

Em operação desde 1979, o principal aeroporto da ilha abandonou a homenagem a ele em 2006. ou a se chamar Aeroporto Internacional de Taiwan Taoyuan (TPE) em vez de Aeroporto Internacional Chiang Kai-shek.
Em 2007, o então presidente trocou o nome do Salão Memorial para Salão Memorial da Democracia e nomeou o boulevard ao redor como Praça da Liberdade - o que permanece até hoje. No entanto, enfrentou contrariedade de lideranças do KMT, de herdeiros políticos da antiga cúpula militar e descendentes de figuras do alto escalão nacionalista, entre eles a própria família de Chiang Kai-shek. Eles eram contra a troca e pediam que não afetasse o conteúdo do monumento. Hau Lung-pin, prefeito de Taipé na época, atuou para impedir a troca.

Em 2009, já sob novo governo do KMT, o então presidente Ma Ying-jeou cumpriu sua promessa de campanha e restaurou o antigo nome para Salão Memorial Chiang Kai-shek. O representante da KMT defende a resolução pacífica das diferenças e a manutenção de relações próximas com a China. No ano ado, ele fez uma visita a Pequim e foi o primeiro ex-presidente taiwanês a ser recebido por Xi Jinping na capital chinesa. Xi e Ma haviam se reunido em 2015, em Singapura.
A celebração da data nacional, no dia 10 de outubro, ao longo da história ou de marchas militares para paradas coloridas com participação de civis e flores, na área da Praça da Liberdade.
Em outra frente, o Ministério do Interior anunciou neste mês que pediu à Justiça a dissolução do Partido da Promoção da Unificação Chinesa (CUPP), sigla nanica que defende a reunificação com a China. A alegação é que o partido pró-união estaria envolvido em atividades criminosas. Segundo o ministério, os caciques do partido possuem vínculos com “forças externas”, violam leis repetidamente e coloca em risco “a segurança nacional, a estabilidade social e as eleições justas”.

Ancestrais
A revisão do período do Terror Branco é parte de um esforço maior para valorizar a ancestralidade própria, à parte do continente, e criar uma mentalidade de pertencimento e de defesa comum que garanta a manutenção da atual autonomia de governo. A ofensiva do DPP faz parte do movimento para fortalecer a identidade nacional na ilha e apagar vínculos com a China continental.
Neste processo, Taiwan tenta resgatar o aporte cultural de 16 etnias indígenas (2% da população atual). Eles ganharam até um canal de TV para promover conteúdo.
Trata-se de uma população marginal frente à majoritária (95%) ascendência han, grupo étnico originário do norte da China, entre os 23 milhões de pessoas que vivem no território de 36 mil quilômetros quadrados (menor que o Estado do Rio de Janeiro).

Na sede da Presidência, por exemplo, visitantes são apresentados à história da cultura austronésia, de suas línguas e da expansão marítima dos povos. Segundo os estudos antropológicos, os austronésios teriam partido originalmente de Tawian e se espalhado por uma vasta região insular, de Madagascar, na África, à Nova Zelândia, na Oceania, e à Ilha de Páscoa, território chileno no Pacífico Sul.
Em paralelo, a ilha busca um novo perfil de relacionamento econômico e comercial, que reduza a concentração - e a dependência - excessivas na China, foco de investimentos e exportações. O ponto de virada ocorreu oito anos atrás, com a reorientação aos países do sul e sudeste asiáticos, como Indonésia, Tailândia, Filipinas, Vietnã, Malásia e Índia. Dessa região vêm cerca de 800 mil imigrantes vivendo na ilha. Em consequência, houve uma mudança no perfil da balança comercial - as exportações à China e Hong Kong caíram do recorde de 44% para 35%, em 2022.

“Confiávamos muito na China e não prestamos muita atenção a esses países do nosso entorno,”“Esse foi o ponto de virada”, ressalta James C.J. Hsiao, do Conselho de Desenvolvimento Nacional de Taiwan.
O esforço de distanciamento inclui um maior relacionamento industrial e tecnológico com EUA, Coreia do Sul e Japão, países da cadeia de suprimentos dos semicondutores. “Estamos transferindo investimentos da China e colocando no Vietnã e Índia para desenvolver novas bases de fabricação industrial“, diz o embaixador Remus Li-Kuo Chen.
O repórter viajou a convite do Ministério de Relações Exteriores de Taiwan