Desde que foi publicado nos Estados Unidos, em março, o livro Terra Partida, da britânica Clare Leslie Hall, não saiu da lista de mais vendidos do jornal New York Times. Agora, a obra ambientada na Inglaterra rural das décadas de 1950 e 1960 chega às livrarias brasileiras pela editora Intrínseca. Leia um trecho abaixo.
O sucesso do romance começou quando foi escolhido como leitura de março do clube do livro da atriz Reese Witherspoon, ganhando projeção imediata. Desde 2017, ela seleciona mensalmente uma obra centrada na história de uma mulher para discutir com os membros.
No caso de Terra Partida, essa mulher é Beth Johnson, figura que vive uma vida pacata em uma fazenda ao lado do marido, Frank, e do cunhado, Jimmy. Apesar das aparências tranquilas, todos carregam a dor da perda do filho de Beth, Bobby, em um acidente trágico alguns anos antes.

Certo dia, um cachorro aparece na casa da família e é morto por Jimmy. Um garoto desolado sofre com a perda do animal, e Beth é tomada pelo instinto de consolá-lo. O problema é que o menino é filho de Gabriel Wolfe, o primeiro amor de Beth que acaba de retornar à cidade divorciado.
O reencontro com o homem faz a mulher lembrar de sua versão jovem e sonhadora, antes de ser abalada pela perda do filho. ado e presente se misturam com ressentimentos e tensões - tudo isso enquanto o julgamento sobre um misterioso assassinato ocorre no tribunal local.
Reese Witherspoon chamou a obra de “uma mistura emocionante de mistério de assassinato e uma chance única de reviver sua história de amor mais verdadeira novamente”. Ela gostou tanto do livro que sua produtora, Hello Sunshine, negociou os direitos para uma adaptação antes mesmo do lançamento oficial.

Até o momento, poucos detalhes sobre o filme foram divulgados além de que ele será coproduzido pela Sony Pictures, com Reese Witherspoon, Lauren Neustadte e Ashley Strumwasser como produtoras. A Hello Sunshine já foi responsável por adaptações literárias de sucesso, como as minisséries Daisy Jones & The Six e Pequenos Incêndios por Toda Parte, e o filme Um Lugar Bem Longe Daqui.
Leia trecho de ‘Terra Partida’
Parte 1 - Gabriel
O fazendeiro está morto. Ele está morto. E tudo o que querem saber agora é quem o matou. Foi um acidente ou assassinato? Parece assassinato, dizem, aquele tiro certeiro no coração só pode ter sido intencional.
Eles estão esperando que eu fale. Dois pares de olhos implacáveis me encaram. Mas não sei como falar o que ele quer que eu diga, as palavras que ensaiamos várias e várias vezes minutos antes de chegarmos à polícia.
Balanço a cabeça, preciso de mais tempo.
É verdade o que dizem: em momentos decisivos como esse, você vê a vida ar num piscar de olhos. Volta a ser aquela criança que tinha tudo pela frente, um mundo de beleza e noites estreladas.
Ele está esperando que eu o olhe e, quando finalmente o encaro, sorri para me mostrar que está bem, dando um breve meneio de cabeça.
Diga, Beth. Diga agora.
Eu olho de novo para o rosto dele, o rosto que sempre foi e sempre será lindo para mim, um último olhar de relance entre nós antes que tudo mude.
1968
Hemston, distrito de North Dorset
— Gabriel Wolfe voltou para Meadowlands — diz Frank, o nome explodindo na minha cara durante o café da manhã. — Ele se divorciou. Agora ficam só ele e o filho zanzando de um lado para o outro naquela casa imensa.
— Ah...
Parece ser a única palavra que consigo pronunciar.
— Foi o que pensei. — Frank se levanta da mesa e se aproxima, pega meu rosto com ambas as mãos e me beija. — Não vamos deixar esse imbecil fazer nada com a gente. Não vamos chegar nem perto dele.
— Quem te contou?
— Todo mundo estava falando sobre isso no pub ontem à noite. Eles precisaram de dois caminhões enormes pra trazerem todas as coisas de Londres, aparentemente.
— Mas o Gabriel odiava este lugar. Por que ele voltaria para cá?
É muito estranho dizer o nome dele de novo. É a primeira vez que o falo em voz alta depois de tantos anos.
— Não há mais ninguém pra cuidar do lugar. O pai dele se foi há muito tempo, a mãe vive do outro lado do mundo, com sorte afundada até o pescoço em merda de cachorro.
Frank sempre consegue me fazer rir.
— O que tem aqui pra ele, afinal? — pergunta Frank, despreocupado, mas eu sei o que ele realmente quer dizer. Além de você. — Ele está fadado a vender tudo e se mudar pra Las Vegas ou Monte Carlo ou sei lá onde essas... — ele se esforça para encontrar a palavra e parece satisfeito quando consegue — ...celebridades gostam de ficar de bobeira.
Frank a o dia inteiro — e boa parte da noite — na fazenda, cuidando dos nossos animais e do terreno. Ele trabalha mais do que qualquer pessoa que eu conheço, mas sempre tira um tempo para reparar na beleza de um pôr do sol de primavera ou numa cotovia levantando voo. A conexão que ele tem com a natureza está profundamente enraizada em seus ossos. Uma das muitas coisas que amo nele. Frank não tem tempo para ler ou ir ao teatro. Ele não saberia o que é um dry martíni nem se alguém lhe atirasse um na cara. Meu marido é a perfeita antítese de Gabriel Wolfe, ou pelo menos daquele que aparece nos jornais.
Eu o vejo se encostar na porta para calçar as botas. Em vinte minutos, sua pele estará impregnada com fedor de esterco de vaca.
Frank se sobressalta quando uma forte batida ecoa do outro lado da porta.
— Puta merda! — diz ele, abrindo-a tão rápido que seu irmão entra aos tropeços.
Nossas manhãs sempre começam desse jeito.
Jimmy, o rosto ainda vermelho da bebedeira da noite ada, olhos semicerrados, uma mecha de cabelo espetada para cima, diz:
— Tem aspirina, Beth? Tô com uma baita dor de cabeça.
Pego a caixa de remédios na cômoda, que é basicamente usada para as ressacas de Jimmy. Antigamente, era cheia de paracetamol infantil e curativos de emergência.
Há cinco anos de diferença entre eles, mas Frank e Jimmy são tão parecidos que, de longe, até eu tenho dificuldade para diferenciá-los. Os dois têm quase um metro e noventa de altura, cabelo escuro, quase preto, e olhos tão azuis que as pessoas costumam olhar duas vezes. Os olhos da mãe, me disseram, embora eu nunca tenha tido a chance de conhecê-la. Ambos estão usando calças surradas de veludo cotelê e camisas grossas, que logo serão cobertas pelos macacões azul-marinho, o uniforme diário deles. O pessoal na cidade às vezes os chamam de “os gêmeos”, mas apenas de brincadeira; Frank cumpre muito bem o papel de irmão mais velho.
— O que aconteceu com “vou terminar só mais esta cerveja e encerrar a noite”? — diz Frank, sorrindo para Jimmy.
— Cerveja é a recompensa de Deus por um dia honesto de trabalho.
— Isso está na Bíblia?
— Se não está, deveria.
— Vamos cuidar dos carneiros ao meio-dia. Vejo você lá? — pergunta Frank em voz alta, saindo ao lado de Jimmy, ainda dando risada.
Os rapazes saem para ordenhar as vacas, e a cozinha fica vazia. Há uma porção de tarefas a fazer. Lavar a montanha de roupa suja (os macacões enxaguados dos dois irmãos estão à minha espera para serem esfregados no tanque). Lavar a louça do café da manhã. Varrer o chão que sempre precisa ser varrido, não importa quantas vezes eu e a vassoura.
Em vez disso, faço um café fresco, visto uma velha jaqueta impermeável de Frank e me sento à mesinha de ferro forjado para fitar nossos campos até que meu olhar encontra seu alvo: três chaminés vermelhas de diferentes alturas espreitando acima da penugem verde dos carvalhos no horizonte.
Meadowlands.
Antes
1955
Não sei se estou invadindo o terreno de alguém, estou perdida em um mundo de sonhos, fantasiando com cenários românticos em que tudo dá certo. Eu me imagino ao lado de uma fonte com uma orquestra a todo vapor, recebendo uma declaração de amor apaixonada. Ando lendo muitos livros de Austen e das irmãs Brontë, tenho tendência a embelezar as coisas.
Eu devia estar olhando para o céu, literalmente com a cabeça nas nuvens, então a colisão vem do nada.
— Mas que droga é essa?
O rapaz em quem eu esbarro não é nenhum herói. Ele é alto, esguio, arrogante, tipo um sr. Darcy adolescente.
— Você não olha por onde anda? — diz ele. — Esta é uma propriedade privada.
Acho toda essa coisa de “propriedade privada” um pouco absurda, principalmente quando acompanhada por um sotaque ríspido como o dele. A campina em que estamos, verde e curva, repleta de carvalhos cheios, é a Inglaterra em toda a sua glória. É Keats, é Wordsworth. Todos deveriam poder aproveitar este lugar.
— Você está sorrindo? — Ele parece tão zangado que eu quase caio na gargalhada.
— Estamos no meio do nada. Não tem mais ninguém aqui.
Que importância isso tem?
O rapaz me encara por um instante antes de assimilar o que eu disse.
— Você tem razão. Meu Deus. O que tem de errado comigo? — Ele estende a mão em uma oferta de paz. — Gabriel Wolfe.
— Eu sei quem você é.
Ele olha para mim, esperando que eu diga meu nome, mas não sinto vontade de contar a ele. Já ouvi falar de Gabriel Wolfe, o rapaz bonito da casa grande, mas esta é a primeira vez que o vejo pessoalmente. Ele tem um belo rosto: olhos escuros emoldurados por cílios pelos quais minhas amigas seriam capazes de matar, cabelo castanho ondulado que cai sobre a testa, maçãs do rosto marcadas, nariz elegante. Uma beleza do tipo aristocrático, acho que dá para descrever assim. Mas ele está usando calça de tweed enfiada em meias de lã, jaqueta de tweed combinando jogada nos ombros, como se fosse uma capa, e um cinto. Roupas de velho. Definitivamente, não é meu tipo.
— O que você estava fazendo aqui?
— Procurando um lugar pra me sentar e ler — digo, e tiro meu livro do bolso do casaco, um volume fino de poemas de Emily Dickinson.
— Ah, poesia.
— Você parece um pouco decepcionado. P. G. Wodehouse é mais a sua cara?
Ele suspira.
— Eu sei o que você está pensando. Mas está errada.
Sorrio de novo, não consigo evitar.
— O que você é, um leitor de mentes?
— Você acha que sou um riquinho idiota. Assim como Bertie Wooster.
Inclino a cabeça e o examino dos pés à cabeça.
— Ele adoraria o seu estilo, você tem que itir. Ele diria que você sabe se vestir.
Quando Gabriel ri, muda por completo.
— Esta é a velha calça de pescaria do meu pai. Eu roubei de uma caixa de coisas que iam para o bazar. Não teria vestido se soubesse que você ficaria tão ofendida.
— É isso que você estava fazendo, pescando?
— Sim, logo ali. Eu te mostro, se você quiser.
— Pensei que era uma área proibida pra gente como eu...
— Então, é por isso que você tem que vir. Eu fui rude e queria corrigir o meu erro.
Fico plantada diante dele, indecisa. Não quero me meter numa situação difícil de sair. Tudo o que eu queria era um lugar bonito para me sentar e ler.
Gabriel sorri novamente, aquele sorriso que transforma o rosto. Bonito até com suas roupas de velho.
— Eu tenho biscoitos. Por favor, venha.
— Que tipo de biscoito?
Gabriel hesita.
— Com recheio de creme.
Fonte, orquestra. Lago, biscoitos. Não é tão diferente assim.
— Bem, neste caso... — digo, e é assim que começa.
1968
De todas as estações, o início da primavera — quando o ar está frio, os pássaros começam a voar e os campos estão cheios de carneiros — sempre foi minha favorita. Bobby era louco por nossos carneiros. Todo ano ele alimentava os filhotes com uma mamadeira, esse era seu trabalho, não deixava ninguém mais tocar nela, uma vez até faltou a escola para fazer isso. Ele era um menino alegre e cheio de vida. Durante o inverno, usava short e saía sem casaco, mesmo quando a diretora da escola o mandava voltar para casa para pegar um. Um menino de ouro.
Quando era pequeno, cantava tanto que o chamávamos de Elvis. Era alto e magro, com cabelo castanho espetado, como o do tio.
Consigo ouvir o rádio de Jimmy antes mesmo de chegar ao celeiro. Está tocando uma música dos Beatles, “Hello, Goodbye”, no volume máximo. Não é uma música muito tranquila, mas está claramente funcionando para a ressaca de Jimmy. Eu o observo enquanto entro pelo portão na parte mais alta do campo; uma de suas mãos está apoiada no traseiro de uma ovelha, os quadris balançando de um lado para o outro, o pé esquerdo balançando.
— Cadê o Frank? — pergunto, e Jimmy aponta para a parte mais afastada do campo.
Juntos, assistimos a meu marido saltar a cerca. Ele apoia um braço forte na tábua de cima e balança o corpo em um ângulo reto antes de ar por cima, tal qual um atleta olímpico. Frank faz isso quase todos os dias, mas ainda me dá uma pequena onda de prazer quando o vejo agir de forma tão inocente, mesmo sendo um homem cuja vida é tomada por trabalho pesado.
Ele caminha pelo campo em nossa direção, balançando com vigor os braços, e mesmo de longe sei que ele provavelmente está assobiando. Esse é o meu marido, no lugar onde ele mais ama estar.
A maioria das nossas ovelhas já pariu, temos quarenta e seis cordeiros no pasto e um punhado ainda no redil. Apenas um que ainda precisamos alimentar com mamadeira, além de um natimorto. Frank e Jimmy inspecionam as ovelhas prenhes, colocam a palma das mãos na barriga de cada uma para verifi car se há alguma ruptura na vulva, e examinam seus traseiros em busca de sinais de que o parto se aproxima. É mais instintivo do que qualquer coisa; eles seriam capazes de fazer isso dormindo. Jimmy é o coração mole, ele conversa com as ovelhas enquanto trabalha e dá a elas um biscoito quando termina. Frank está sempre com pressa, com a cabeça sempre cheia e uma interminável lista de tarefas.
— Acha que a gente já pode encerrar a reunião das mães e seguir em frente? — pergunta Frank, e Jimmy revira os olhos.
— O cara é mandão, né? — diz o irmão mais novo às ovelhas.
As ovelhas ficam num campo extenso e inclinado, mas não se espalham muito, estão sempre agrupadas aqui em cima, ao lado do celeiro. Daqui a uma semana mais ou menos os cordeiros ficarão mais independentes, e é nessa época que começam a saltar, arqueando as pernas finas. A etapa que Bobby mais amava. Ele era um menino da fazenda, entendia como isso funcionava, mas todo ano fi cava arrasado quando chegava a hora de despachar seus bebezinhos para o mercado.
Não sei qual de nós ouve o latido primeiro. Nós três viramos e damos de cara com um cão da raça lurcher de pelo dourado correndo em disparada na nossa direção.
Um cão perdido avançando nos nossos carneiros.
— Saia daqui! — Frank tenta bloquear o animal.
Ele é alto e forte, mas o cachorro simplesmente o contorna feito uma flecha e vai direto para o meio do rebanho.
As ovelhas estão gemendo, os minúsculos filhotes balindo de medo; têm apenas alguns dias de vida, mas sentem o perigo. De repente, há uma súbita mudança no cão. Olhos pretos, rosnando com os dentes à mostra, o corpo rígido de adrenalina.
— Pega a arma, Jimmy! Agora! — grita Frank, e Jimmy se vira e corre para o galpão.
Frank é veloz e, gritando, se lança em direção ao cachorro, mas o cão é mais rápido. Ele abocanha um cordeiro, pegando-o pelo pescoço e rasgando sua garganta. O vermelho assustador do sangue se empoça na grama. Um cordeiro, dois cordeiros, depois três, as tripas sendo jogadas como oferendas em um ritual.
As ovelhas se espalham por toda parte agora, tropeçando, cegas de terror, seus recém-nascidos expostos ao perigo.
Corro em direção ao cachorro, gritando, tentando afastar os cordeiros, mas ouço Jimmy berrar:
— Saia do caminho, Beth! Saia da frente!
E então Frank me envolve em seus braços e me aperta com tanta força que sinto o coração dele martelando no peito. Ouço um tiro e depois outro, e o breve e indignado uivo de dor do cachorro. Acabou.
— Puta merda! — diz Frank, se afastando, verificando meu rosto, pressionando uma palma contra minha bochecha.
Caminhamos até o cachorro, nós três murmurando para chamar as ovelhas de volta.
— Venham, meninas...
Mas elas estão tremendo e balindo, mantendo distância dos três jovens cadáveres.
Do nada, como uma miragem, um menino vem correndo pelo campo. Pequeno e magro, de short. Talvez uns dez anos de idade.
— Meu cachorro! — grita ele.
Sua voz é tão doce e aguda.
— Porra! — diz Jimmy, assim que a criança vê o monte de pelo ensanguentado.
— Você matou meu cachorro! — grita o garoto.
O pai dele está aqui agora, ofegante e corado, mas ainda muito parecido com o menino que conheci.
— Ah, Jesus Cristo, você atirou nele.
— Eu tive que atirar. — Frank gesticula na direção dos cordeiros massacrados.
Não acho que Gabriel tenha ideia de quem seja Frank, ou pelo menos com quem ele é casado, mas então ele se vira e me vê, e por um momento vejo um vislumbre de pânico em seu rosto.
— Beth — diz ele.
Mas eu o ignoro. Ninguém está prestando atenção na criança. O menino está de pé ao lado do cachorro, as mãos cobrindo os olhos como se quisesse esconder o horror.
— Aqui.
Em segundos, eu me ponho ao lado do menino, minhas mãos em seus ombros. E então, me ajoelho na frente dele e o envolvo em um abraço. Ele começa a chorar.
— Pode chorar — digo. — Chorar vai ajudar.
Ele desmorona em cima de mim, agora aos prantos, um garoto de short em meus braços.
E é assim que começa de novo.

Terra Partida
- Autora: Clare Leslie Hall
- Tradução: Renato Marques
- Editora: Intrínseca (320 págs.; R$ 59,90 | E-book: R$ 39,90; lançamento: 2/5)